domingo, 23 de fevereiro de 2020

Sociedade Esportiva e Cultural Arco-íris ( SECAI )

Sociedade Esportiva e Cultural Arco-Íris (SECAI)

SECAI 


A Sociedade Esportiva e Cultural Arco-Íris mais conhecida por SECAI, é localizado no Bairro Nossa Senhora das Graças (Grande Pirambu). O SECAI foi fundado em 14 de setembro de 1960 e destacou-se pela atuação na área de esportes, lazer, qualificação profissional, junto aos jovens moradores do bairro. É hoje um dos clubes mais antigos ainda em funcionamento na sociedade Fortalezense. 

Noitada no Secai. Da esquerda pra direita: Jean Sarquis, Paulo Quengão, Denis Quevedo, Celso Barreira (Maninho, o empresário do amor), Zé Carlos Mororó, Parente (Zé Fuzil) e Luiz Romcy

Seu apogeu foi nos anos 80, quando eram realizadas grandes festas. Hoje em dia, o clube continua reunindo adeptos mensalmente, mas, ultimamente, as festas de funk afastaram as pessoas, por causa das confusões. Também, o aparecimento das grandes casas de show e as caranguejadas, às quintas-feiras, na Praia do Futuro, colaboraram para o enfraquecimento do movimento da casa.
Festa no SECAI em 1988 Grande Pirambu




Contudo, antes da Pandemia de COVID, o SECAI entrou em decadência, o alto custo com IPTU, Energia e principalmente as demandas da  INFRAESTRUTURA e pouco retorno financeiro fez com que o famoso Secai não conseguisse se manter. Hoje infelizmente encontra-se desativado e com a infraestrutura visivelmente precária, precisando de reforma.

SECAI em funcionamento 2019



sábado, 22 de fevereiro de 2020

CHICO DA SILVA Entrevista

CHICO DA SILVA

Chico da Silva

No Ceará, glória e do primitivo Chico da Silva 
A Allan Fisher, amigo sincero dos primitivos do Brasil L.E.M.K.

 – Povo aqui reunido... Tenho muita honra em falar a vocês... Estejam todos unidos pela massa deste torrão do Pirambu... Em nome dos artistas do Ceará eu peço a união de todos, por um dia melhor de amanhã, e que todos nos acompanhem... 

Atarracado, testa ampla, tez morena de índio, baixo, óculos de turista, vistoso no seu costume de linho tropical, Chico da Silva está prendendo a atenção dos moradores de seu bairro com seu linguajar caboclo, seus achaques, seus adágios, seu fraseado encantatório cheio de verdades, de frustrações, de psicologias astuciosas e grandiosas. Ele é o convidado principal da noite do SECAI – Sociedade Esportiva e Cultural Arco-Íris, do Bairro onde mora, o Pirambu, um dos mais pobres de Fortaleza. O SECAI, um clube recreativo-social de 400 associados, promove exposições, bailes e coquetéis, acabou com as malfadadas “gafieiras” cheias de gatunos e marginais do Pirambu. Chico da Silva está de pé junto à mesa das autoridades. Seu jeito e sua fala de expressão bizarra e sertaneja prendem a atenção geral. O presidente da sociedade, Francisco Francinetti Vieira da Costa, e os demais dirigentes trocam sorrisos, contentes com o sucesso da veneta fácil do pintor – ele que já é respeitado, querido e quase um líder popular do Pirambu. 

galo

Chico se curva ante a trovoada de aplausos, sua conferencia terminou. Ele sai pela Rua Pirambu, onde mora, passa pelo Largo do Santo. Ali estão o velho chafariz, a Farmácia Deus e Mar, a biblioteca da Prefeitura, o Círculo Operário, as casinhas enfileiradas, brancas, azuis, amarelas, vermelhas. Uns moleques, mais uns amigos chegados, como o sapateiro Raimundo Aguiar da Silva, formam um cortejo bizarro atrás de si. Chico cumprimenta a uns e a outros, acena familiarmente, é chamado de “Dr. Chico”, ri, alegre, com a bocarra de ouro, entra no bar do compadre, é a hora de tomar umas e outras (preferência: uísque). Uma dose só, que se sente meio gordo ultimamente, inchado. Quer verse perde um pouco a barriga, a zoeira doida. 

– Nasci no Acre, nas margens do Alto Tejo – começa a depor o famoso primitivo brasileiro – junto à fronteira do Peru, em 2 de maio de 1928... Meu pai era peruano, dono de barcos, e minha mãe cearense; no Amazonas tem um bocado de cearense, sabe por quê? O cearense sai daqui porque ele é disposto, forte e rijo, não podo passar fome... O cearense é cobiçado no Sul e no Norte, se ficar aqui os carcarás matam e comem ele. 

Chico não diz que o cearense tem uma atração mítica por santos e conselheiros, guerreiros e penitentes, cangaceiros e violeiros. Ali na rua de terra batida, impecável no linho alvo, os sapatos de pelica branca – presente do comandante Paiva da Polícia Marítima do Recife, cidade que visitou recentemente – Chico é um herói de ABC, puxa o álacre cortejo de vizinhos, amigos, ambulantes, garotos vadios. 

– Comecei a pintar a carvão e giz, rabiscando os muros das casinhas dos pescadores da Praia Formosa, junto do passeio público, e em 43 fui descoberto por Jean Pierre Chabloz, um francês consertador de piano, que vivia em Fortaleza... Ele gostou dos meus navios fantasmas, dos meus peixes, das minhas aves, que fazia com giz, carvão e barro queimado, dando cor com frutos e folhas... Ele me deu material e fiz uns desenhos a guache e depois mais 17 trabalhos, que foram expostos nos “Diários Associados”. O jornalista Manuelito Eduardo deu destaque no jornal... Chabloz levou esses trabalhos para o Rio e depois para a França. Lá peguei nome e renome em Paris... Uns ele vendeu, outros trouxe de volta, devem estar com ele... Fiz muita amizade com o francês, parece que ele casou umas 4 vezes, não o vi mais. Gosto dele, sou seu amigo até hoje. 
Dragões

– O que fazia na época? 
– Sou analfabeto, só aprendi a assinar meu nome. Deixei de pequeno o Acre, já fiz muita coisa na vida... Fui sapateiro, sei consertar sapato-tanque oi polar, fui tamanqueiro, mestre de oxigênio a carbureto, guarda de barco, escafandrista de tirar coisas do fundo do mar, consertador de guarda-chuva, um pouco de barbeiro, ajudante de marinheiro... e aí foi então que, em Salvador, conheci minha mulher, Maria Dalva da Silva, filha de uma baiana que vendia acarajé no Pelourinho; tive 12 filhos, 5 estão vivos e só a Chica da Silva pinta como eu... Agora, de muito tempo para cá, sou pintor e só pintor. 

– E a história de seus alunos que lhe dão quadros para assinar? 
– Gosto de ser ofendido, não gosto de ofender... O Chabloz é que começou com essa história e também algumas pessoas que me exploraram, ficaram com o dinheiro de meus quadros... Nunca mais terei “marchands-de-tableaux”, o último que arranjei ficou com 16 milhões dos quadros que vendi no Recife... Esses que falam que meus quadros estão caindo, que eu não sou o mesmo, que vivo bebendo e fazendo farra... Enquanto for vivo, tenho valor e se morrer, t erei valor dobrado... Isso não dá pé não, isso não tem bronca, não... Só reconheço como meus alunos, que fazem uma arte como a que pinto, minha filha Chica e meu assobrinhado Manuel, filho de Raimundo, esse sapateiro aqui do Pirambu. Os grandes mestres tiveram alunos e ensinaram, porque eu não haveria de ensinar também?... O que criei, crio sempre, faço o diabo, faço Deus, tenho competência e braço forte, não caí, não... Até morrendo, se não for de repente, faço um quadro na hora, de bichos e dragões, de cobras-d’água e pássaros do céu... Manuel é meu único aluno e eu o criei desde pequeno. Sua mãe quando morreu o confiou a mim. Só ensinei a ele o bom e o bonito... Manuel e a Chica são meus únicos alunos, os únicos que reconheço como meus seguidores. 

Amazônia feérica (1964)

– Os mundos fantásticos de bichos de suas pinturas são lembranças de sua infância? 

Chico se acalma um pouco, afinal, a autenticidade das telas atuais de Chico é muitas vezes contestada, Chabloz escreveu há 3 anos um duro artigo crítico, no Jornal do Brasil” – “Chico da Silva, ou a ingenuidade perdida”. De larga repercussão. Nos hotéis, em vários lugares de Fortaleza, telas atribuídas a Chico levando sua assinatura (F D SILVA, com o D invertido) e o conhecido carimbo do polegar, são vendidas a 50, 70, 80, 100 cruzeiros, atestando a vil exploração do pintor do Pirambu, cuja fama corre estes brasis e o mundo. Chico se senta numa pedra da praia, mexeu com um velho amigo, disse um dito galante para aquela moreninha. 

– Esses mundos que pinto não são recordações de quando eu era menino, não, isso se chama imaginação, ciências ocultas, astronomia... Quando era pequeno, não via nada disso, vivia nos rios, de cima pra baixo, com meu pai... Agora estou pintando pouco e vou mudar a minha pintura... Vou pintar flores, quadros florais, acompanhadas de bichos, flores, porém, selvagens, da Amazônia... A gente quando é primitivo tem que executar e criar o que sente... E eu sinto os bichos, as selvas, os mundos fantásticos, entrando da fase de outros mundos... O mundo hoje vive em lutas e guerras. Isso tudo vai acabar, vamos entrar numa fase lunática, depois virá uma fase celeste, os homens que foram à Luz, não foram para estudar, forma por eles mesmos, por suas imaginações e ciências, são primitivos como eu... Por isso estou sempre criando, sou sempre um primitivo. 

Chico da Silva anuncia que montará em breve sua galeria de arte, a Galeria Chico da Silva, onde só venderá quadros seus. Ele mesmo será seu próprio “marchand-de-tableaux”, palavra que fala com fascínio. Será numa casinha branca, rosa e azul, com terraço e alpendre, cheia de quartos. A nova rua é a Tenente Lisboa. A casa já está alugada e passa por reforma, conduzida por dois serventes que contratou. Chico paga bem, como em suas doidas corridas de táxi pela cidade, táxis grande que aluga. Ficam esperando, enquanto negocia suas telas, ou para nas esquinas para tomas “umas e outras” com os amigos. Se é noite, deixa a dentadura de outro em casa, tem medo de ficar alegre demais, ser roubado. Conta e ri, escancara a boca toda dourada, comprou a peça no Uruguai – diz – por 800 contos. 

– Como pinta? 
– A qualquer hora, de manhã, à tarde, à noite... Pinto com a mão canhota e muito depressa... Parece que tenho uma máquina de costura dentro do meu braço... Não gosto de ninguém perto, quando pinto em casa, no quarto do fundo... Quando brinco, só brinco, quando pinto, só pinto, e acabo logo os quadros... Num dia faço um quadro... Uso guache ou nanquim, tintas e outras coisas, mas não digo mais não... A arte e a cultura são para quem pode... A pintura tem que ter muita técnica... Nem tenho conta quantos quadros pintei até hoje, o mundo está cheio de chicos-da-silva, acho que sou o pinto brasileiro que mais pinta, mais ainda que o Aldemir e o Bandeira... O Aldemir não chega a ¼ do que eu já fiz e o Bandeira, que aliás mora na França, também. 

– E o preço de seus quadros? 
– Aqui no Ceará não é o Sul, Fortaleza fica no norte do país, e o Norte é pobre e o Nordeste uma “mixaria”... E tudo está numa seca miserável como em 32... Vendo por 80, 60, 50 cruzeiros, tem gente que oferece isso... Querem rebaixar a Igreja do padre ao seminarista... Não dão valor à arte, não dão valor às coisas da terra... Pensam que o Ceará só tem animal na selva... Contudo, pinto sempre, para viver e para comer... Lá fora, meus quadros valem milhões, há pouco foi vendido um quadro meu nos Estados Unidos por 2 milhões de dólares.. E eu sei disso, pois já estive na França, na Tchecoslováquia, na Itália, em Portugal, nas Filipinas e na Alemanha. 

Chico da Silva está dolorido com suas próprias palavras, seu ressentimento transparece. São acusações, frustrações, são explorações, ele que “é bom demais”, segundo diz ali tomando o vento forte que sopra do mar esverdeado que banha Fortaleza na luminosa manhã domingueira. 

 – O Chico é bom demais, nunca explorou ninguém, o que é dele não é dele, é de quem precisa... Não tenho religião, minha religião é o amor... Minha maior satisfação é dar a quem não tem... E o que é que eu tenho?... Nada... Minha casa é alugada, tinha 3 casas em São Raimundo, o mar comeu... Agora dizem que tenho casa em Aracati, até vou lá ver isso... A casa onde moro há 20 anos está em balanço de ser minha, finalmente, pago 200 contos por mês... A Galeria vai custar mais 250... A vida é dura aqui no Ceará... E sempre fui roubado e explorado, aqui e no Sul, por galerias e “marchands”... Tem galerias ainda com quadros meus, mas vou acabar com isso... Agora só vendo direto, sozinho... Não me admiro dos outros, quero o que é meu... Não sou invejoso, não sou egoísta, não sou moralista também... Estou por fora de movimento e exposições, estou na minha pintura primitiva, abraço a todos e a tudo. 
Maria Dalva espera Chico à porta da casa, precisa de 20 cruzeiros para fazer galinha ensopada à noite. Chico gosta. Ela vai dizendo que o Chico é índio legítimo, caboclo peruano, não tem aperreio, não tem gênio, foi criado em família, é bom demais. Apenas, muitas vezes, explorado por falsos amigos e conselheiros. Ultimamente vem ajudando a gente pobre do Pirambu, o SECAI, gosta do povo, de falar. Acorda cedo, às 5 horas. Pinta, sai, almoça em casa, sai de novo, vai à televisão, aos jornais, ao Hotel Savanah, procura os turistas, vende quadros, almoça em casa, não, não come peixe, filho de pescador não gosta de peixe, gosta de feijão, arroz, farinha, jabá, uma galinha e, à noite, agora, prefere chá e bolacha, precisa comer menos, está engordando, ficando barrigudo, se toma umas caipirinhas é levado pelos amigos, diz que todos têm seus direitos... Mas como o Chico é bom em casa, para ela, os filhos. A roda à volta da casa é grande, a meninada do bairro festeja o pintor falante e triunfante. O auditório não é só infantil, os vizinhos estão ali, até um velho bistique que vende água de barril pára seus jumentos para ouvir Chico da Silva. 

– Não tenho medo da morte, quero deixar umas coisas para ficar, uns livros, quadros não deixo nada... Não sou católico nem apostólico, nem crente... Gosto dos homens porque meu pai me fez e gosto das mulheres porque minha mãe me teve... Mas quando morrer, acaba isso tudo... E a alma é para passarinho... Sinto alegria, sinto poesia, sinto música dentro de mim, às vezes sinto que sai uma música de dentro de mim... Então me sinto feliz da vida... Essa música, essa vida, muito lutei, nada roubei, o que me levaram, levaram... Sejam todos muito felizes. 22/10/72. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Hino do Bairro Pirambu: A marcha do Pirambu



Hino a Marcha do Pirambu 

O HINO DA MARCHA DO PIRAMBU 



O hino do bairro Pirambu, composto em meados da década de 1960 para o evento "Marcha Sobre a Cidade", ressoam os versos: "Vem vê, ó Fortaleza/ O Pirambu passar/ Somos pessoas humanas/ Temos direitos que ninguém pode tirar"; da história das pessoas que por lá vivem, sobressai a marca libertária e um desejo de querer ser escutado, visto, sentido.



Escute já o Hino Completo abaixo !



A MARCHA DO BAIRRO PIRAMBU 

Missa antes da Marcha no PIRAMBU 
Desde a sua origem o Pirambu carrega o estigma da inferioridade. Entre os moradores perpassava a ideia de que aqueles que moravam em barracos em condições sub-humanas seriam portadores de uma doença terrível: a miséria. Sendo, portanto, alvos fáceis da violência e por isso desacreditado e excluído.
                  Goffman (2008:27) nos diz que o “indivíduo estigmatizado ou é muito agressivo ou é muito tímido e que, em ambos os casos, está pronto a ler significados não intencionais em suas ações”. E, essa característica pode ser observada entre os moradores do Pirambu e aqueles que frente a esses indivíduos “estranhos”, ignoram suas qualidades e passam a olhar apenas com descrédito, atribuindo-lhe a condição de pessoa má e perigosa.
                  No presente artigo pretendemos entender o Pirambu, que durante muito tempo carregou o atributo de bairro violento e miserável, e que, acabou se projetando a partir da construção da Paróquia de Nossa Senhora das Graças, sendo, portanto, um espaço de lutas e expressão política na década de 1960, notadamente a partir da luta pela desapropriação das terras, o que se configurou com a Marcha sobre a Cidade de Fortaleza em 1962.
                  Partindo dessa premissa e tendo como base as reflexões realizadas durante a disciplina “Cidade e insubmissão”, chegamos à conclusão de que a atitude de não se submeter à determinada norma social consiste, pois, num ato de insubmissão. E a Marcha dos moradores do Pirambu é um bom exemplo de insubmissão.


2. A Cidade, suas vitrines e a marcha dos insubmissos.
                  Começamos este tópico analisando a Cidade de Fortaleza na década de 1930, a formação da favela do Pirambu e a famosa Marcha Sobre a Cidade em 1962.
                  Pensar a cidade de Fortaleza na década de 1930 é pensar uma cidade que oferecia surpresas aos olhos, surgidas a partir das muralhas da Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção. A cidade “(...) com suas ruas que giram em torno de si mesmo como um novelo” (Calvino, 1990:45), fechado dentro de si mesmo, deixando a sua periferia invisível. A cidade polo de atração não apenas das trocas econômicas e migratórias, mas também lugar de trocas culturais (Barros, 2012:84). A cidade moderna, que é espaço de criação da moda e padrões de comportamento. Aquela que se constitui em pontos de encontro de civilizações,[1] e por isso nem sempre pertence aos seus habitantes (Barros, 2012:84), mas ao olhar estrangeiro tão presente na Urbe. Para as elites da cidade “civilização e progresso são termos destinados a manter as mais estreitas relações” (Starobinski, 2001:15).
                  Por isso, a cidade dos casarões, praças e comércio desenvolvido dava as costas para as habitações de taipa, esquecidas entre as dunas brancas do Pirambu e os terrenos baldios que despontava entre os trilhos e o cemitério São João Batista.[2]
                  As famílias do Pirambu passaram a habitar os casebres localizados entre as dunas, que se moviam de acordo com as forças dos ventos que sopravam do mar e que muitas vezes soterravam as casas ou obstruíam as ruelas sinuosas e estreitas começaram a se organizar bem antes mesmo da chegada do Padre Hélio Campos.
                  Motivados pela situação de extrema miséria e exclusão social, os moradores do Pirambu se engajaram no movimento em prol do bairro. Muitas reuniões foram realizadas nas casas de alguns moradores, que a partir de um discurso referente à necessidade da luta pela desapropriação da terra, acabam por assumir uma posição de liderança.
                  José Maria Tabosa nos diz que, apesar da organização, os moradores do Pirambu tinham dificuldade de comunicação com as autoridades governamentais, para que as mesmas pudessem ouvir suas reivindicações. Tal situação motivou as lideranças do bairro a procurar o vigário da Paróquia dos Navegantes, no vizinho bairro de Jacarecanga. Depois de se inteirar da situação dos moradores do Pirambu, Padre Hélio Campos concordou em celebrar missas nesse bairro de pessoas excluídas e marginalizadas.
                  Segundo Marins (1965), antes de se tornar vigário do Pirambu, o Padre Hélio recebeu do Arcebispo de Fortaleza autorização para celebrar missas numa casa localizada na Rua Nossa Senhora das Graças. Tratava-se da antiga Gafieira do Arcanjo.[3] O proprietário da antiga casa de diversão, já idoso, acabou se convertendo, tornando-se um dos homens seguidores do Padre Hélio. Por tal motivo vendeu sua propriedade ao Padre, que transformou o prédio em sede provisória da Igreja Matriz do Pirambu. Mais tarde, o local foi transformado na fraternidade das Irmãzinhas de Foucauld.[4]
                  Assim, de acordo com Marins (1965), até o dia 19 de março de 1958, as missas no Pirambu eram celebradas na capela da fraternidade das Irmãzinhas de Jesus, do Padre Foucauld. A partir dessa data foi criada a Paróquia de Nossa Senhora das Graças do Pirambu, sendo o Padre Hélio Campos, nomeado seu primeiro vigário, pelo então Arcebispo de Fortaleza, Dom Antonio de Almeida Lustosa.
                  Na verdade, tratava-se de uma sacristia onde futuramente seria construída a Igreja do Pirambu, conforme destaca Marins:
No espaço de um mês a sacristia estava concluída e passou a funcionar como Igreja paroquial. Foram os homens de Pirambu que providenciaram tudo – pediram tijolos, improvisaram-se em mestres de obras, transportaram materiais, deram horas de serviço extra, recolheram tábuas desmantelando velhos caixões (...) destes, alguns serviram para que finalmente, se fizesse a primeira porta da casa paroquial. Mas dada a primeira experiência, a casa paroquial continuaria sempre aberta para todos há todas as horas. Não raro o trabalho prolongava-se até duas horas da madrugada. Os protestantes colaboraram trabalhando alguns dias, juntamente com os demais, 20 horas continuam. O primeiro altar foi feito por um comunista. (Marins, 1965:27)
                  Antes de sua total conclusão a Igreja do Pirambu, apresentava um sino pendurado ao lado de um muro, que esperava o revestimento definitivo. Aos domingos, o templo religioso reunia muitos moradores do bairro. “O padre havia ganhado, pouco a pouco a confiança de muitos” (Sampaio, 1971:139). Pessoas que se sentiam desmoralizadas ao se declararem moradores do bairro.  Pois, predominava o estigma de que o bairro era violento, o que de certo modo, desacreditava seus moradores diante do olhar daqueles que tinham um status social mais elevado.
                  O Pirambu havia se tornado em pouco tempo um bairro bastante populoso, mas a realidade era deprimente, pois faltava infraestrutura básica, as famílias habitavam barracos sem nenhum saneamento, infestados de verminoses, as mães davam à luz no único cubículo, numa esteira de palha.
                  As ameaças de despejo eram constantes, o que levou o Padre Hélio Campos a adotar uma postura crítica em relação ao poder local. Tal fato pode ser evidenciado a partir de um depoimento de um antigo morador do Pirambu, onde podemos perceber a coragem do Padre na sua luta a favor dos pobres, enfrentando aqueles que se diziam proprietários das terras e as autoridades policiais.
Uma vez, quando a polícia quis derrubar uma casa, o Padre Hélio subiu no telhado e gritou de cima, que podiam começar. (...) Ele bem organizou a sua defesa e um sistema de alarme que podia avisar no período de uma hora quarenta mil paroquianos. (...) Mesmo depois de uma declaração jurídica oficial em favor dos proprietários, o Padre continuava a defender os pobres, pois duvidava do valor e legalidade dos documentos apresentados. (...) Quando 19 famílias deviam deixar suas casas, ele mandou soltar quatro horas antes 19 foguetes, e  imediatamente juntaram-se, bem em ordem, os homens do Pirambu, para impedir o trânsito nas entradas do lugar. As mulheres e as crianças formavam um círculo bem fechado, ao redor das casas comprometidas. O resultado? Não se pensa mais na possibilidade, de desterrar o povo do Pirambu, sabendo, que qualquer nova tentativa provocaria uma revolta pública na cidade, pois, os estudantes e operários entrariam logo no primeiro alarme do Padre Hélio, em ação.[5]
                  As táticas utilizadas pelo Padre Hélio Campos refletem o processo de organização dos moradores contra as ameaças de despejos. Utilizando o tempo e o espaço de forma racional procurou isolar o campo de luta, minando assim qualquer tentativa de reação por parte do inimigo. Nessa perspectiva, Michel de Certeau nos fala que:
As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo – às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, a rapidez de movimento que mudam a organização do espaço, às relações entre os momentos sucessivos de um “golpe”, aos cruzamentos possíveis de duração e ritmos heterogênios etc. (Certeau, 2008:102)
                  Além de mobilizar os moradores contra as ordens de despejos, o Padre Hélio passou a denunciar na imprensa a situação de miséria do povo do Pirambu.   O padre então, se apropria do discurso com seus poderes e seus saberes (Foucault, 2009:44-45).
                  Contando com a ajuda da jovem assistente social, Aldaci Barbosa,[6] o Padre Hélio passou a se reunir com os moradores do Pirambu no espaço da recém-construída Igreja de Nossa Senhora das Graças.
                  O Padre desde o primeiro momento que abraçara a causa dos moradores do Pirambu contou com a ajuda das assistentes sociais, estudantes universitários, lideranças locais: Peixoto, Mundico, Eusébio, Laura, Vicente, Aracati, Luis Gonzaga, Aluísio, Arcanjo, dentre outros moradores do Pirambu.
                  Além das assistentes sociais, o Padre contou também com a ajuda de seminaristas e freiras que participaram da organização de um núcleo da Juventude Operária Católica (JOC)[7] no Pirambu. Tal iniciativa contribuiu para a formação intelectual dos jovens do bairro, despertando neles uma visão de mundo mais crítica e uma disposição para lutar contra a exclusão social e a exploração da sua força de trabalho pelos capitalistas que comandavam as várias fábricas instaladas no entorno do bairro.
                  De acordo com Zé Maria Tabosa, a instalação da JOC no Pirambu foi muito importante para a juventude do bairro. Pois, a partir de então pode ter contato como os partidos políticos e com os estudantes universitários.[8] Fato esse, que trouxe significativas conquistas para os moradores do Pirambu.
                  Toda essa efervescência política no Pirambu e as necessidades dos moradores motivou o Padre Hélio a lançar em maio de 1960 o Plano de Recuperação do Pirambu.  Esse plano consistia na organização do bairro, tendo o Centro Social Paroquial Lar de Todos,[9] como o órgão de planejamento no qual a Igreja e o Serviço Social trabalhariam em conjunto, com o objetivo de erradicar a miséria do bairro.
                  Segundo o Padre José Marins, com o Plano de Recuperação do Pirambu, o Centro Social Paroquial Lar de Todos, seria o órgão impulsionador do bem estar de todos, estando, pois ligado a quatro departamentos: Engenharia, Serviço Social, Saúde e Educação. O departamento de Engenharia era encarregado pelo urbanismo e engenharia sanitária, com a construção de casas populares, abertura de ruas e saneamento do bairro. O departamento de Serviço Social, por sua vez, era encarregado pela análise dos casos individuais, em grupo e organização social da comunidade, a partir do acompanhamento das famílias, dos jovens, nas escolas, nos postos de saúde, nas fábricas e na questão da habitação. Já o departamento de Saúde, consistia num ambulatório, serviço odontológico, serviço de proteção à maternidade e a infância, educação sanitária e clinica médica. E, por fim, o departamento Educacional, consistia em trabalhar junto a Escola Primária, Escola Maternal, Ginásio, Escola Profissionalizante e Escola de Líderes.
                  De acordo com notícias veiculadas no Jornal Gazeta de Noticias, o Plano de Recuperação do Pirambu tinha por objetivo garantir a melhoria das condições de vida de todos os moradores e a redução da violência no bairro. Na edição do dia 11 de maio de 1960 esse jornal traz uma entrevista com o Padre Hélio Campos, onde o mesmo revela a população cearense, a real situação dos moradores do Pirambu, que era de extrema miséria:
(...) Padre Hélio diz com lágrimas nos olhos que chegou a uma porta e pela primeira vez teve de parar ao invés do habitual “Entre padre”, notou desconfiança. Insistiu e a muito custo entrou. Um quarto (cubículo infecto, seria melhor dizer) estava interditado.  Mocinhas filhas da casa não podiam sair, nem serem vistas. Estavam despidas. E não tinham roupa de espécie alguma para vestir. Os pais calados, com vergonha: não diriam a ninguém o seu drama. Mas a verdade foi vista. Padre Hélio encontrou solução para aquele problema humano e pungente. (...) Pirambu é um manancial de problemas. É um rosário de miséria a desafiar a competência administrativa das  autoridades, do comércio, clero, imprensa, rádio, indústria, de todos que vivem como gente. Naquele antro de rebotalhos sociais, onde o crime encontra campo fácil e fértil, parece que a ação dos seres humanos civilizados passou bem longe e parecerá incrível, aos mais céticos represente a verdade, o que estamos dizendo e vamos dizer noutras reportagens. A GN integra-se hoje na luta do Padre Hélio, de dezenas de jovens alunos do curso de assistente social, na luta de todos, em busca de uma solução para o problema Pirambu. (Gazeta de Notícias, Fortaleza, 11de maio de 1960, p. 4)
                  Na edição do dia 18 de setembro de 1960, o jornal Gazeta de Notícias destaca a doação recebida pelo Padre Hélio Campos, das mãos de Dona Ilka Carneiro. Tratava-se de uma camioneta “Wolkswagen”, oferecida pelos deputados Carlos Jereissati e Raul Carneiro e das Pioneiras Sociais. Ainda, segundo o jornal tratava-se de uma valiosa ajuda ao trabalho de recuperação do Pirambu.
                  Na edição do dia 19 de maio de 1960, na coluna intitulada “GN no Pirambu: uma conclamação ao Povo do Pirambu e de toda Fortaleza”, o Sr. Vicente Paulo, representante do Conselho de Homens do Centro Social do Pirambu, esclarece a população de Fortaleza a real situação de vida a que estão submetidos os moradores do Pirambu e apontam quais são as suas reivindicações:
Os 50 mil habitantes do Pirambu anseiam por mais  escolas públicas com merenda para as crianças, chafarizes, cacimbas públicas, caminhões da PMF para limpeza  pública (ao menos uma vez por semana), fossas nas residências (há uma campanha que precisa ser reativada). A falta de trabalho, por que os homens de negócios não instalam indústrias no Pirambu, é um dos pontos por que sempre nos batemos e inclusive poderíamos ter a ajuda do Sr. Prefeito nas obras de calçamento, serviços capazes de nos oferecer mais dignos salários. (Gazeta de Notícias, Fortaleza, 19 de maio de 1960, p. 8)
                  A campanha em prol do Pirambu ganhou os espaços do jornal Gazeta de Notícias. De acordo com Geraldo Walmir Silva (1999), o jornalista Lesso Bessa nutria uma grande simpatia pela causa do Pirambu. Com certeza, o discurso desse veículo de informação, de certa forma, amenizou o estigma de que o Pirambu era apenas um bairro violento. A cidade pode então conhecer que esse bairro era um celeiro de miséria e que necessitava da ajuda de todos para conquistar sua dignidade.
                  Durante a década de 1960, o Pirambu foi notícias em jornais, revistas e nas rádios locais. O estado de miséria do bairro chamou a atenção até de entidades internacionais. Tal fato pode ser evidenciado em 1961, quando da visita do jornalista Peter Pauquet e do Padre Henrique Pauquet, enviado especiais do Cardeal Joseph Frings, Arcebispo de Colônia. Os mesmos vieram divulgar a campanha de “Ação do Episcopado Alemão Contra a Fome e a Doença”, no Nordeste Brasileiro. A comissão garantiu a construção de um hospital para tuberculosos em Fortaleza e ao Padre Hélio uma quantia em dinheiro para ajudar no Plano de Recuperação e Humanização do Pirambu.
                  Na conjuntura de crises em que se encontrava o país, o Pirambu surge como um bairro de insubmissos, despertando temor e receios por parte daqueles que abominavam as ideias de reforma social. Tal fato pode ser percebido na edição do dia 17 de dezembro de 1961, do jornal carioca “Correio da Manhã”, onde aponta o Nordeste como um vulcão que a qualquer hora poderia explodir. Já que o contraste entre as grandes riquezas e as infinitas misérias, uma palavra de revolta poderia fazer uma revolução.
                  E o noticioso, continua explicando que no campo, diversos grupos disputam a liderança dos movimentos camponeses. A Igreja de Pernambuco com o trabalho do Padre Mello e a Igreja do Pirambu em Fortaleza com o trabalho do Padre Hélio Campos, ambos realizando obras sociais profundas, que na visão dos conservadores, poderiam representar iniciativas de esquerda.
                  Enquanto o bairro e seu vigário eram notícias nos diversos meios de comunicação da época, os moradores se preparavam para a Marcha sobre a Cidade. Eles se reuniam por áreas e por setores. O Pirambu era composto pelas seguintes comunidades: Lagoa Funda, Japão, Casas Novas, João XXIII, IAPI e Arpoadores.
                  A Paróquia também começava a se organizar e apresentava o seguinte organograma: Uma Assembleia Geral – que era o órgão máximo dos moradores e se reunia de dois em dois anos. Um Conselho de representantes, com reunião semanal; deste órgão faziam parte o diretor geral, o administrador geral, os diretores dos diversos órgãos e dois representantes de cada comunidade. Um Diretor Geral que era eleito pela Comunidade. A Assistente Social, Aldaci Barbosa era a coordenadora geral, sendo auxiliada por uma assessoria técnica e administrativa; no qual coordenava os setores da administração, catequese, saúde, educação, trabalho, setor urbano, setor do serviço social e da diversão.
                  Essa forma de organização do Pirambu foi um fator de extrema importância para o êxito da Marcha, cuja preparação se dera durante dois anos com intensas reuniões, cujo objetivo maior era o processo de conscientização dos moradores. E, foi a partir dessas reuniões que nasceu o Hino do Pirambu.
                  De acordo com Zé Maria Tabosa, nas grandes reuniões ocorridas no Pirambu, os militantes do PCB com alguns moradores cantavam o Hino da Internacional Comunista, fato esse que muito incomodava o Padre Hélio Campos. Diante de tal questão propôs aos moradores a criação de um Hino que representasse os ideais dos moradores daquele bairro. Coube ao Padre Geraldo Campos, irmão do Padre Hélio, a tarefa de reunir alguns moradores e juntos criarem o Hino do Pirambu. A partir de 1961, o Hino já era entoado nas reuniões e nas celebrações nas diversas comunidades do Pirambu.
                  A criação do Hino do Pirambu reflete uma tensão entre as posições, constitutiva da estrutura do campo[10] de poder presentes no bairro. A Igreja não poderia permitir aos seus seguidores cantar o Hino da Internacional Comunista, por isso precisaria ter o seu próprio Hino. E, o Hino do Pirambu ecoou pelos quatro cantos da Cidade de Fortaleza no dia 1 de Janeiro de 1962. Ele anunciava a chegada do povo do Pirambu, denunciavam em seus versos as desigualdades sociais tão evidentes na Cidade e chamando a atenção dos ricos para os “favelados”, que também eram seres humanos e tinham direitos que ninguém poderia tirar.
                  Os moradores do Pirambu, cujo líder religioso se inspirava nos princípios das encíclicas papal “Rerum Novarum”,[11] de Leão XIII e “Mater et Magistra”[12] de João XXIII, tinham na Marcha a preocupação com a questão social, que inspirava o sacerdote a se colocar à frente do movimento, pondo em prática seus ensinamentos.
                  A reforma social à luz da doutrina cristã era uma necessidade dos moradores do Pirambu e do Padre Hélio Campos, pois desejavam uma sociedade mais justa e humana. E diante de tal fato, se propunham a denunciar as injustiças sociais e a miséria do povo do Pirambu.
                  A Marcha idealizada pelos moradores do Pirambu foi divulgada pela imprensa local com certo temor, principalmente quando o padre Hélio Campos afirmou que a mesma se tratava de uma advertência aos poderosos do Estado.  Os jornais locais noticiaram o fato como se não fosse possível um padre e seus seguidores conseguirem concentrar um número significativo de pessoas. Porém, o movimento se concretizou no dia 1 de janeiro de 1962, quando a população do bairro, após a celebração de uma missa no pátio à frente da Casa Paroquial às 16 horas, saiu marchando pelas ruas da Cidade, indo pela Avenida Francisco Sá, prolongando-se pela Rua Guilherme Rocha, Sena Madureira e finalmente Conde D’Eu, onde os manifestantes de forma pacífica passaram a ocupar os espaços da Praça da Sé.
                  Maria Luiza Fontenelle nos conta que um dos registros mais importantes dessa época foi o livro Aldeota, de Jáder de Carvalho, em que ele diz que:
Enquanto que nos jornais registravam o crescimento da cidade. O crescimento da Aldeota com uma burguesia nascente, ligada ao comércio, a exportação. Ele diz que, essa burguesia foi ameaçada com a Marcha do Pirambu. Pois foi a primeira vez que um movimento desse porte colocou nas ruas as suas reivindicações, não só através de cartazes, não só através de faixas, mas através da música: “Vem ver oh! Fortaleza o Pirambu passar...” E o Jáder disse que se tratava de uma Marcha pacífica. As pessoas não ameaçaram do ponto de vista físico, absolutamente, nem nada, nem ninguém. No entanto, aquela multidão na rua era a expressão da força do povo.[13] 
                  Vejamos o que diz Jáder de Carvalho (2003) em seu livro Aldeota:
A multidão marchava quase vagarosamente. Não semelhava uma avalanche a espraiar-se nas ruas. Não cantava canções revolucionárias. Não gritava protestos. Não pedia cabeças. Não reclamava o sangue dos ricos. Não delirava de ódios, marcada por fanatismo. Não era mística. Mas todo o sentido da sua realização bramia num cartaz. O cartaz incendiava-se nestes dizeres: “Pecado mortal é morrer de fome”. (Carvalho, 2003:414)
                  Na manhã do dia 2 de janeiro de 1962, os jornais cearenses anunciavam a Marcha do Pirambu. A cidade despertava com as manchetes que denunciavam os gritos dos insubmissos que ousaram desafiar o poder local e as elites de Fortaleza, desfilando pelas ruas da cidade, com suas faixas e cartazes denunciando as injustiças sociais e pedindo uma reforma social. A Marcha foi manchete nos jornais, O Povo, Correio do Ceará, Gazeta de Notícias, O Nordeste e O Estado, que deram bastante destaque ao acontecimento que chamou a atenção da coletividade, sendo, pois, o início de uma série de transformações que iria se verificar em Fortaleza nas décadas seguintes, notadamente, no bairro do Pirambu e em outros bairros pobres da cidade, a partir da organização das Comunidades Eclesiais de Base, base de sustentação da Teologia da Libertação, que viria a surgir somente no final da década de 1960.

3. Considerações Finais.
                  Consideramos, portanto que a Marcha dos moradores do Pirambu pelas ruas de Fortaleza como um ato de insubmissão que ameaçou a burguesia da cidade e despertou temor por parte da hierarquia da Igreja Católica. Esta foi a primeira vez que os moradores de uma favela levaram para as ruas as suas reivindicações através de faixas, cartazes e entoando o famoso Hino do Pirambu.
                  De acordo com Costa (1995:23) a partir da realização da Marcha, abrem-se as portas para o Pirambu. Esse fato acabou projetando o bairro como um dos pioneiros no cenário dos Movimentos Sociais Urbanos de Fortaleza, mostrando que, através da organização, o povo é capaz de vencer e conquistar seus objetivos. A Marcha também propiciou ao direito a terra, fato esse, que se evidenciou através do Decreto Lei 1.058, de 25 de maio de 1962.
                  Embora tenha conseguido a desapropriação das terras junto ao Governo Federal, os moradores do Pirambu enfrentaram pela frente uma longa história pela posse da terra. O estigma da pobreza e da violência permaneceu, apesar da visibilidade alcançada com a Marcha do Pirambu.

NOTAS:


[1] De acordo com STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001: “a palavra civilização diz respeito aos abrandamentos dos costumes, educação dos espíritos, desenvolvimento da polidez, cultura das artes e das ciências, crescimento do comércio e da indústria, aquisição das comodidades materiais e do luxo” (p.14).
[2] Espaço construído em 1866 para receber os mortos vitimados pela varíola e outras epidemias que assolavam o Ceará no século XIX.
[3] A Gafieira do Arcanjo, juntamente com: Castanhola, Riso da Noite, Maracanguaia, Pau-do-Meio e Gozo do Siri são entre as 11 gafieiras existentes no Pirambu na época, as mais famosas. As Gafieiras eram locais de bebidas, danças e mercado de meretrício.
[4] Em 1958 o Padre Hélio Campos abriu no Pirambu a Casa das Irmãzinhas de Jesus. Ordem religiosa iniciada na espiritualidade do beato católico francês Charles Eugène de Foucauld (1858-1916), sendo divulgada na Igreja pelo padre René Voillame, fundador dos Irmãzinhos de Jesus.  Foi na passagem desse padre por Fortaleza em 1958, quando proferiu palestra sobre a espiritualidade de Charles de Foucauld , na Faculdade de Filosofia, onde estudavam jovens que motivados pelas palavras do religioso acabaram entrando para a Fraternidade feminina Jesus Caritas.
[5] Entrevista com Francisco Carlos da Silva, o Carlos Careca, morador do Pirambu. Entrevista realizada no dia 15/10/2010 em sua residência no Bairro Nossa Senhora das Graças.
[6] Aldaci Barbosa conheceu o Padre Hélio Campos, quando fazia estágio como assistente social em uma fábrica de tecido localizada bem próxima a casa paroquial da Igreja dos Navegantes, em Jacarecanga. Na época a jovem  assistente social, sentia-se incomodada com as exigências dos dirigentes da fábrica, cuja  mentalidade era a de que o Serviço Social fosse utilizado como instrumento de controle dos operários, dificultando assim a organização dos mesmos. Depois que expôs ao Padre a sua decepção com a função que desempenhava na fábrica de tecidos, o mesmo convidou-a a participar da missão evangélica no Pirambu.
[7] A JOC foi um dos muitos grupos representando setores médios da sociedade a surgir no Brasil após a Segunda Guerra Mundial. Ele foi o primeiro a ser reconhecido pela hierarquia da Igreja em 1948. A partir de 1950 vieram a Juventude Agrária Católica (JAC), a Juventude Universitária Católica (JUC), a Juventude Estudantil Católica (JEC) e a Juventude Independente Católica (JIC).
[8] No início da década de 1960, a União Estadual dos Estudantes esteve muito presente nas lutas dos moradores do Pirambu. O presidente de tal entidade estudantil, o acadêmico Willys Santiago Guerra foi um dos grandes amigos da campanha de recuperação do Pirambu, lançada em maio de 1960 pelo Padre Hélio Campos.
[9] De acordo com Aldaci Barbosa (1959): O Centro Social Lar de Todos foi instalado no prédio construído pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), em convênio com a Prefeitura de Fortaleza, para abrigar o Grupo Escolar Dr. Odorico de  Morais; Ciro Sampaio ( 1971) esclarece que o prédio permaneceu durante algum tempo fechado em meio a construção e que os moradores  invadiram o prédio e com a ajuda do Padre Hélio concluíram a obra.
[10] Vide BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação social. Tradução Mariza Corrêa. 11.ed. Campinas, SP: Papirus, 2011, p. 65.
[11] A encíclica Rerum Novarum de 1891, do Papa Leão XIII fala sobre a condição dos operários é considerada o ato primeiro do ensino social da Igreja Católica. Na sua introdução ao tratar da a Igreja e a questão social, ela diz que: É com toda a confiança que Nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do Nosso direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza, que, se não apelamos para a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução eficaz. (...) E a Igreja, efetivamente, que haure no Evangelho doutrinas capaz de por termo ao conflito ou ao menos de suavizá-lo, expurgando-o de tudo o que ele tenha de severo e áspero; a Igreja, que se não contenta em esclarecer o espírito de seus ensinos, mas também se esforça em regular, de harmonia com eles a vida e os costumes de cada um; a Igreja, que, por uma multidão de instituições eminentemente benéficas, tende a melhorar a sorte das classes pobres. Carta Encíclica <> do Sumo Pontífice Papa Leão XII < Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html > Acesso em 15/10/2013.
[12] Mater et Magistra é uma Carta encíclica do Papa João XXIII que fala sobre a evolução contemporânea da vida social à luz dos princípios cristãos, publicada no dia 15 de maio de 1961. Na terceira parte desse documento destaca-se os  novos aspectos da questão social, onde se diz que: o avanço da história faz ressaltar cada vez mais as exigências da justiça e da equidade que não intervêm apenas nas relações entre operários e empresas ou direção destas, mas dizem também respeito às relações entre os diversos setores econômicos, entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas economicamente menos desenvolvidas dentro da economia nacional, e, no plano, mundial, às relações entre países desigualmente desenvolvidos em matéria econômica e social.
JOÃO XXIII. Mater et magistra. Carta Encíclica de 15 de maio de 1961. Disponível em: . Acesso em: 25/08/2013
[13] Entrevista com Maria Luiza Fontenelle, realizada em sua residência no dia 30/09/2013.

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FONTES
ORAIS
Entrevista com Francisco Carlos da Silva, o Carlos Careca, morador do Pirambu. Entrevista realizada no dia 15/10/2010 em sua residência no Bairro Nossa Senhora das Graças.
Entrevista com Maria Luiza Fontenelle, realizada em sua residência no dia 30/09/2013.
Entrevista com Maria Luiza Fontenelle, realizada em sua residência no dia 30/09/2013.

JORNAIS:
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Correio do Ceará, Fortaleza, 2 de janeiro de 1962.
Correio do Ceará, Fortaleza, 3 de janeiro de 1962.
Gazeta de Notícias, Fortaleza, 11 maio 1960.
Gazeta de Notícias, Fortaleza, 19 de maio de 1960.
Gazeta de Notícias, Fortaleza, 18 setembro 1960.
Gazeta de Notícias, Fortaleza, 3 de janeiro de 1962.
O Estado, Fortaleza, 3 de janeiro de 1962.
O Nordeste, Fortaleza, 2 de janeiro de 1962.
O Povo, Fortaleza, 6 de setembro de 1960.
O Povo, Fortaleza, 2 de janeiro de 1962.

DOCUMENTOS DA IGREJA:
Carta Encíclica <<Rerum Novarum>> do Sumo Pontífice Papa Leão XII. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_lxiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html > Acesso em 15/10/2013.

Carta Encíclica <<Mater et magistra>> do sumo Pontifice Papa João XXIII. Disponível em:. Acesso em: 25/08/2013

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